A Última Missanga

Baseado no conto "O Fio e As Missangas" de Mia Couto               


               Eram onze horas. La Duque, um teatro decadente na Rua das Flores, abria para mais um de seus espetáculos burlescos, tão decadentes quanto o próprio recinto.
               Tomé, diretor e dono da casa, não fazia ideia do que significava burlesco, mas gostava da palavra. “Soa chique!” - ele dizia, com suas plumas e maquiagens berrantes. Jojo era quem ficava na bilheteria. Um jovem afeminado, franzino, que sonhava em se casar com a Marilyn Monroe. Vinha correndo com seus passinhos estabanados em direção ao elenco: - “Casa cheia! Sete pessoas!”. Comemoravam com distintas palminhas. Ao terceiro sinal um grito coletivo é ouvido do lado de dentro da coxia. “Merdé”. Em francês, porque é chique.
               A cortina se abre. No centro do palco está Dona Graciosa, com seu vestido de paetês verde esmeralda, sobre saltos desengonçados e um colar de missangas pendurado no fino pescoço. Ao som do piano, canta Ne Me Quitte Pas, um tom acima que o do instrumento, numa voz rouca e desafinada. Entre uma respiração e outra, um gole de whisky barato, ao qual sempre adicionava dois dedos d’água para durar mais.
               Na primeira mesa está JMC, um homem distinto, sempre acompanhado de um bom vinho, em um copo americano. Assiste com olhos atentos cada gesto exagerado de sua amada. Ao final, a olha em silêncio e acena delicadamente a cabeça em sinal de contemplação, como um monge budista ao terminar de meditar. No camarim, beijam-se vagarosamente. “Hoje sou Leonora” - diz a mulher enquanto se despe. Tira o nó de seu colar e coloca nas mãos de JMC uma missanga, que ele guarda cuidadosamente em sua carteira junto a um fio de nylon recheado de outras tantas bolinhas coloridas. Misturam seus corpos num bailado sincronizado que dura até o amanhecer. Ele a cobre, beija seu rosto e se vai.  Antes de ir para a casa, passa na mãe. “Leonora. Hoje amei Leorona”. A mãe sorri enquanto banha o filho como se preparasse um santo para o altar. Quando chega em casa Dona Graciosa já está na cama. O homem entra com cautela, a observa dormir, sorri, a beija e deita ao seu lado esperando a vida que seguirá seu rumo depois do meio dia.
               Todos os sábados o ritual se repetia. Entre perucas, paetês e vozes desafinadas,  teciam pequenos contos de amor. Certa vez, Dona Graciosa cismou em falar italiano. “Nina, amore mio! Nina!”. Queriam macarrão, mas contentaram-se com os restos de pizza que sobrara do dia anterior. Desfaz o nó. Mais uma missanga guardada na carteira.
               Por anos a fio, Dona Graciosa fora todas as suas mulheres. Até o dia em que acabaram as palminhas atrás da coxia, os vinhos em copo americano, as canções todas. Tomé mudou de cidade e levou com ele sua trupe e os pequenos contos de amor de JMC.
               Desde então, seguiu-se um novo ritual. Todos os dias, por horas inumeráveis, JMC sentava-se no banco em frente ao teatro, prostrado, como se esperasse o som do terceiro sinal e as cortinas se abrindo. Sempre com um copo americano na mão. Vazios. Ele e o copo.
               Eis que naquela tarde, enquanto conversava com um amigo de outrora, o sol fez refletir o brilho de espalhafatosos paetês. O som não era dos sinais do teatro, mas de uma voz conhecida que, de repente, trazia afago ao seu coração. Dona Graciosa lhe estendeu a mão: “O meu nome você me há-de chamar, mas só depois”.
               Mal sabia ele que Dona Graciosa não era mais uma de suas missangas, mas o próprio colar.

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